Contratos de Locação em Revolução
- Gustavo Trancho
- 3 de abr. de 2020
- 6 min de leitura
Em decorrência da pandemia da covid-19, o direito sobre as relações privadas está sofrendo rápidas e profundas mudanças.
Havendo duas medidas provisórias já aprovadas sobre as relações de trabalho, a nova pressão social para repactuação decorrente das medidas de mitigação e supressão ocorre sobre as relações de locação.
Esta texto noticia dois projetos de lei sobre o tema e os poucos julgados que já iniciam a aparecer enquanto não há lei específica sobre o tema.
PL 1.179/20 - Senado Federal
O projeto de lei oriundo de uma comissão informal de juristas sob a coordenação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Dias Toffoli (clique aqui para ler a íntegra).
O projeto trata de diversos temas, mas o que diz respeito à locação é a medida mais contundente e polêmica. O senador e professor de direito - Antônio Anastasia (PSD/MG) - foi quem protocolizou o projeto, tendo justificado
"Hoje, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor, possuem regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão, no primeiro caso, e onerosidade excessiva, no segundo diploma. É preciso agora conter os excessos em nome da ocorrência do caso fortuito e da força maior, mas também permitir que segmentos vulneráveis como os locatários urbanos não sofram restrições ao direito à moradia." Justificativa do Projeto de Lei do Senado 1179/20.
O texto tramitou preferencialmente, e já conta com mais de 50 emendas. Politicamente, pode ser lido como uma tentativa de obter protagonismo para o Senado na condução dos assuntos do país (tendo em vista a edição de Medidas Provisórias pelo Executivo a respeito das relações de trablaho e o protagonismo da Câmara Federal no debate do Benefício de Prestação Continuada - simplesmente referendado pelo Senado). Por isso, a tramitação acelerada e a certeza de que o texto vai em breve para votação no Plenário. A realização de reportagem pela Rádio Senado é outro indicativo de que o projeto deve avançar.
A matéria da Rádio Senado tem como manchete justamente as relações de locação: "Senado pode votar fim dos despejos enquanto durar a pandemia de covid-19".
Propostas relativas à locação urbana
As locações urbanas têm uma lei especial que regula o direito dos locadores e locatários - é a Lei do Inquilinato (Lei 8245/91).
Com a justificativa de que a locação urbana não é regida nem pelo Código de Defesa do Consumidor (tema que hoje é pacífico) nem pelo Código Civil (o que não é inteiramente certo, por que as locações são regidas pela lei civil geral no que não conflitam com a sua lei especial), o PL 1.179/20 propõe:
1. proibir as liminares de despejo nas ações propostas após 20 de março de 2020
2. proibir não só a liminar, mas o despejo dos locatários adimplentes nas locações residenciais feitas sem prazo certo
3. autorizar aos locatários residenciais que perderam renda suspender o pagamento do aluguel entre 20 de março e 30 de outubro de 2020 (7 meses de aluguel).
Logo se vê que a manchete da Rádio Senado era exagerada, por que só um raro tipo de despejo será proibido - a denúncia vazia dos contratos residenciais. A proibição existente é contra o despejo deferido por liminar.
As propostas referentes à locação são os pontos mais polêmicos da lei, havendo 10 emendas que discutem essas medidas relativas à locação. Há quem defenda a supressão das medidas, quem acautele o proprietário com o pagamento de juros, e quem pretenda estender o parcelamento e permiti-lo para locações comerciais e locações em shoppings centers.
Além da locação, há propostas para proteger os promissórios-compradores de imóvel que não conseguem financiar a parcela final, quem teve o imóvel leiloado em razão de alienação fiduciária não paga, e quem está com as prestações do imóvel em atraso.

Proibição de Liminares em Despejo - quem será afetado?
A liminar mais comum para despejo foi introduzida pela Lei 12.112/2009, que reformou a lei do inquilinato, é a do locatário inadimplente que contratou nenhuma garantia - são locatários sem caução, sem fiador e sem seguro-fiança.
Esse tipo de contrato é mais comum em periferias, ou em quitinetes, e a proteção da moradia da população normalmente mais desprovida (quem não tem um parente com imóvel para ser fiador) parece ser adequada - mesmo em prejuízo do locador, que terá muitas dificuldades em receber o valor devido.
A proibição de retirar por liminar quem perdeu a garantia de um contrato (por que o fiador faleceu, por exemplo) também é uma medida adequada - especialmente por que é um inquilino que pode até estar em dias com todas as suas obrigações.
Medida inócua - liminar para comércio com prazo vencido
A proibição de conceder liminar para desocupar um comércio, após o término do prazo contratual, parece ser uma medida inócua. Muitos comerciantes gostariam de devolver o ponto para deixar de pagar aluguéis e poucos locadores acabariam com um ponto de comércio em suas lojas justo em um período tão difícil de conseguir outro locatário.
Liminares que deveriam continuar valendo
Já a proibição de outras liminares parece indevida. Não faz sentido proibir liminar contra o inquilino que fez um acordo para sair de um imóvel, com prazo mínimo de seis meses e depois descumpriu esse acordo. O locador pode estar contando com o imóvel para morar, ou para entregar para outra família, e as partes tiveram pelo menos seis meses para se planejar.
O sublocatário que permanece no imóvel depois que o locatário saiu é outro raro caso que deveria ser permitida a liminar, ou quando o locatário falece e não sobra ninguém de sua família no imóvel.

PL 1204/20 - Senado Federal
O projeto de lei apresentado individualmente pelo Senador Álvaro Dias (Podemos/PR) tem uma chance bem menor de tramitação acelerada. Mas o PL é ilustrativo de um pensamento que pode surgir com relação aos aluguéis comerciais. A íntegra dele está disponível aqui.
O projeto trata exclusivamente das locações, e proíbe todos os despejos por falta de pagamento até setembro de 2020 (um prazo menor que o PL 1.179/20), isentando os locatários do pagamento de juros (e mantendo a correção monetária pelo IPCA).
Há a previsão de que todos locatários podem devolver os imóveis, se quiserem, sem pagar quaisquer multas, desde que o façam até junho de 2020.
Por fim, com relação à intervenção na forma de pagamento dos alugueis, o projeto cuida exclusivamente dos imóveis comerciais fechados por ordem do poder público. O projeto determina que nenhum valor é devido durante os dias (ou meses) fechados. Em caso de faturamento prejudicado pela queda no movimento, sem que o estabelecimento tenha sido fechado, os aluguéis continuam sem alteração.
Locação sem pagar nada equivale a desapropriação
O PL 1204/20 teve a boa iniciativa de incluir as atividades proibidas de trabalhar, mas se excedeu. Se o ponto comercial já não vale nada, o locatário pode devolvê-lo. Se o locatário prefere não devolver, essa sua opção deve ter um custo econômico - mesmo que reduzido. Continuar com o ponto significa que o locatário tem uma expectativa de reiniciar a sua atividade lá e isso tem um valor - que é devido ao locador.
De outro lado, há atividades que foram severamente impactadas mas não foram inteiramente proibidas. A recomendação da ANVISA vigente é que cirurgiões-dentistas (uma das categorias mais sensíveis ao contágio) só atendam em caso de urgência ou emergência. Os escritórios de advocacia podem trabalhar em processos eletrônicos, mas a utilidade de um imóvel espaçoso (e talvez sofisticado) para atender clientes certamente diminuiu. O projeto de lei ignora esses casos, que mereceriam uma atenção e a adoção de parâmetros para facilitar a renegociação das relações privadas evitando conflitos.

A negociação nacional entre lojistas e shoppings
A Associação Brasileira de Lojistas em Shoppings (Alshop) entrou em negociação com a Associação Brasileira de Shoppings Centers (Asbrasce), o que foi bastante noticiado. A locação do mês de março já foi flexibilizada para todos, havendo conversas se isso é um adiamento ou uma isenção do período fechado.
É bom lembrar que além da locação, os lojistas de shoppings pagam taxas de condomínio pesadas e ainda fundo de promoção (para custear a publicidade de datas comemorativas, como dia das mães e promoções).
A medida evita uma debandada dos centros de compras, e ainda assegura o pagamento do condomínio, podendo buscar uma cobrança parcelada e amigável no futuro - o que certamente será bastante debatido.

Liminares concedidas contra shoppings
Quando a negociação não foi exitosa, e sem uma baliza do poder público, as partes se enfrentam no Poder Judiciário.
Foi o que ocorreu entre a Cia do Terno e o shopping JK, que têm um contrato desde a inauguração do shopping em novembro de 2013, prorrogado até 2023 e com multa de 5 meses de aluguel em caso de rescisão antecipada.
A tese apresentada por uma banca de Minas Gerais é a de que as obrigações do locador envolvem dar a posse do imóvel "em estado de servir ao uso a que se destina" (art. 22, I) e garantir "o uso pacífico do imóvel locado" (art. 22, II, ambos da Lei 8.245/91).
A liminar foi concedida em parte para suspender o pagamento do aluguel mínimo e do fundo de promoções (aproximadamente 60% do contrato), determinando que o percentual sobre o faturamento (os parcelamentos de vendas antigas por exemplo) seja pago, bem como a taxa de condomínio.
Há notícia de que uma decisão similar foi concedida em favor de um restaurante pela 8ª Vara Cível do Fórum de Campinas e contra o Shopping Parque das Bandeiras.
Comentarios