Testamento particular ou hológrafo
- Gustavo Trancho
- 3 de abr. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de mai. de 2020
É possível fazer um testamento em casa válido perante o direito brasileiro?
Este texto destrincha as discussões dos Tribunais sobre a forma necessária para um testamento particular ser válido, explicando por que ele é denominado também de testamento hológrafo.

Formas de testamento na lei brasileira
No direito brasileiro, os testamentos podem ser ordinários ou especiais.
Os testamentos ordinários são aqueles disponíveis a todas as pessoas capazes, em tempos comuns e em situações normais.
Os testamentos especiais são aqueles previstos para quem está longe da terra firme (testamento aeronáutico ou marítimo) ou durante uma campanha de guerra (testamento militar).
Se os testamentos ordinários já são raros, é difícil encontrar qualquer texto mais profundo acerca dos testamentos especiais.
As duas primeiras formas de testamento ordinário (o testamento público e o testamento cerrado) são feitas perante o tabelionato de notas.
A última forma de testamento ordinário é o testamento particular, feito pelo testador, e sem qualquer chancela oficial.
A importância da forma para a validade dos testamentos decorre do fato de que o autor do documento, já falecido, não pode esclarecer nem confirmá-lo em juízo. Por isso, por mais que o formalismo exacerbado não deva ser justificativa para ignorar a vontade do testador, é preciso também lembrar que "as formalidades são previstas para assegurar a vontade do testador, vontade esta, todavia, que, muita vez, é desconstituída e sacrificada porque não se observaram algumas dessas formalidades" (VELOSO, Zeno. Testamentos. 2ª edição - Belém: Cejup, 1993).
Testamento Hológrafo
Hológrafo (por vezes registrado como ológrafo) significa inteiramente escrito pelo autor.
O testamento particular também é chamado de hológrafo em razão da exigência legal de que seja elaborado e escrito pelo próprio testador, não sendo admitido que outra pessoa elabore ou escreva o testamento particular.
Essa regra é deduzida pela diferença entre o testamento particular e as demais formas.
O testamento público é escrito "pelo tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador" (art. 1.864 do Código Civil).
O testamento cerrado (também chamado de secreto ou místico) é "escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado, será válido se aprovado pelo tabelião" (art. 1868 do Código Civil).
Já a regra do testamento particular é que ele pode "ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico" (art. 1.876 do Código Civil) - mas sempre a autoria deve ser do testador. Isso significa que a redação, a leitura e a assinatura devem ser do testador:
"Determina a lei que o próprio testador o redija, leia e assine. Assim, a holografia – ser inteiramente escrito – e a autografia – ser escrito pelo testador – são características do testamento particular que se têm como essenciais, restando infirmado de nulidade se ocorrer a sua inobservância.
Assim, é requisito essencial de validade do testamento que o testador o redija pessoalmente e sozinho, não aceitando ajuda de ninguém, no momento da escrituração do documento.
Esta atividade, pois, é personalíssima do disponente, inadmitindo-se que seja o testamento escrito por outrem, a rogo.
Nulo, pois, será o testamento particular cuja escrituração tenha sido produzida, no todo ou em parte, por terceiro. Segundo ORLANDO GOMES, esta intervenção de outra pessoa na produção da escrituração de um testamento particular, ainda que em trechos irrelevantes, ainda que a respeito de assunto insignificante, compromete irremediavelmente o ato, tornando-o nulo." CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 1ª edição eletrônica baseada na 5ª edição impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, capítulo 12.2.3.
Havendo alguém para induzir, opinar, modificar ou escrever qual seria a vontade do testador, a sua espontaneidade fica comprometida.
Enquanto os testamentos públicos têm uma autoridade para assegurar que a vontade do testador é livre (a forma pública assegurando as intenções do testador), a espontaneidade do testamento particular é assegurada pela holografia, ou seja, a escrita própria, feita sem interferência de terceiros.
Essas formas diferentes de assegurar a vontade do testador foram muito bem exploradas neste julgamento que extraiu do livro de Cândido de Oliveira Filho os fundamentos adotados pelos tribunais franceses:
"A garantia do testamento místico, observa o ilustre jurista, não resulta do ato material da escrita do mesmo, mas sim da leitura feita pelo testador e da declaração, mediante a qual ele atesta a sua concordância ao escrito e como o que faz, perante o notário e as testemunhas - decs. dos Tribs. de Nîmes, de 21 de fev. de 1821, de Gand, de 15 de jun. de 1839, de Bourdeux, de 6 de ab. de 1854, apud Demolombe, XXI, n. 333 [...]" (RE 22832, Relator(a): Min. RIBEIRO DA COSTA, Primeira Turma, julgado em 26/06/1953, DJ 31-12-1953 PP-16099). Trecho do voto do min. relator.
A contrario sensu, a garantia do testamento em que o tabelião não intervém decorre do "ato material da escrita". Como o testamento particular é o que tem menos formalidades, a exigência de que o documento seja elaborado exclusivamente pelo testador é um aspecto formal mínimo de segurança que deve ser exigido para a sua validade.
Origem Francesa da Forma do Testamento Particular
Tal como já se poderia antever pela citação de julgados franceses de meados do século XIX, a exigência da holografia remonta o Código Civil napoleônico. Esse código, muito mencionado para os estudantes de direito, é o diploma legal tido como inaugural do movimento histórico das codificações em diversos países.
Muito embora tenha sofrido muitas reformas em outras partes, o texto original de 1804 do Código Civil francês sobre o testamento particular continua em vigor:
"Art. 970.Le testament olographe ne sera point valable s'il n'est écrit en entier, daté et signé de la main du testateur : il n'est assujetti à aucune autre forme." Código Civil francês.
"Art. 970. O testamento hológrafo não será válido a não ser que tenha sido inteiramente escrito, datado e assinado pela mão do testador: ele não está sujeito a nenhuma outra formalidade." livre tradução
A doutrina francesa do início do século XX discutia se o legislador daquela época exigia a redação de próprio punho:
"Certamente, os redatores do Código civil não teriam admitido a validade de um testamento impresso, pois a impressão tipográfica existia vários séculos antes dele (do Código)" JOSSERAND, Etiénne Louis. Cours de Droit Civil Positif Français, 2ª edição, Paris, Librairie du Recueil Sirey, 1933, volume III, p. 730, n. 1273. livre tradução.
Além de influenciar diversos outros países, o Código napoleônico também influenciou o 1º Código Civil brasileiro, de 1916 - que previa o testamento hológrafo exigindo como requisito essencial "que seja escrito e assinado pelo testador" (art. 1.645, I - Código Civil de 1916).

Testamento Datilografado na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Antes da Constituição de 1988 criar o Superior Tribunal de Justiça para uniformizar a interpretação das leis federais, o Supremo Tribunal Federal acumulava as funções de uniformizar a interpretação da Constituição e das legislação infraconstitucional.
Assim, é possível encontrar julgados antigos do Supremo sobre o art. 1.645, I, do Código Civil anterior.
Em 1954, a 2ª Turma resumiu o entendimento do seu julgado com esta ementa: "Testamento Particular não pode ser Datilografado". No entanto, a leitura do inteiro teor permite entender que a espontaneidade da vontade do testador poderia ser posta em dúvida, já que "as três testemunhas [...] afirmaram que o testamento já estava redigido, quando foram chamadas para assistir à leitura dele [...] Outros fatos autorizam ainda a presunção de que o documento [...] não traduz a manifestação, pura e simples, da vontade do testador" (RE 23618, Relator(a): Min. HAHNEMANN GUIMARÃES, Segunda Turma, julgado em 26/01/1954, DJ 19-08-1954 PP-10116).
Com o julgamento posterior de outro caso, a 1ª Turma resumiu seu entendimento assim:
"É válido o testamento particular datilografado, desde que o seja pelo próprio testador e com observância dos demais requisitos previstos no art. 1.645 do Código Civil." (RE 44379, Relator(a): Min. BARROS MONTEIRO, Primeira Turma, julgado em 12/12/1967, DJ 29-03-1968 PP-00990 EMENT VOL-00721-01 PP-00300)
Muito embora o resumo da ementa permita concluir que o testamento tenha sido considerado válido, a leitura do inteiro teor permite concluir o contrário:
"Feitas as provas requeridas pelos interessados, inclusive a pericial, pela sentença de fls. 168 e seguintes decretou o dr. Juiz de Direito a nulidade do testamento, visto não preencher o mesmo os requisitos previstos no art. 1.645, I do Código Civil.
E, foi essa decisão mantida pelo eg. Tribunal de Justiça daquele estado pelo acórdão de fls. 178, assim ementado:
'O testamento particular, ou ológrafo, deve ser todo escrito e assinado pelo testador. Assim, nulo e de nenhum efeito é o datilografado por terceira pessoa, embora assinado pelo disponente.
De maior vulnerabilidade à fraude, foi, por isso mesmo, o testamento particular cercado de maiores solenidades, entre as quais incluiu a olografia, que é substancial.'
[...]
Também não tenho dúvidas em concluir pela eficácia do testamento particular datilografado, desde que o seja pelo próprio testador. [...] Em tais condições, indemonstrada, no caso, a violência do Direito Federal [...] não conheço, preliminarmente, do apelo extraordinário." Trecho do voto do Min. Barros Monteiro no RE 44379.
Assim, a questão fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nunca foi a questão da datilografia ou do testamento manuscrito - mas da autoria do testamento. A holografia é substancial: o testamento deve ser escrito (não necessariamente manuscrito) pelo testador.

Novo Código Civil Brasileiro: a questão central é a autoria
Superada a questão da forma da escrita na jurisprudência, o projeto de Código Civil que iniciou a sua tramitação em 1975 abordou o tema, que foi incluído na lei atual.
A possibilidade de que o testamento particular seja datilografado ou impresso não pode causar mais nenhuma dúvida hoje pela redação do art. 1.876 do Código Civil de 2002 - que expressamente indica a validade de um testamento produzido de forma mecânica.
O deputado que foi o relator do texto final do Código Civil organizou um livro contando como o projeto tramitou no Congresso Nacional. Especificamente quanto ao testamento particular, o relator propunha que ele pudesse ser escrito por outra pessoa, mas foi vencido:
"Quem o escreveu só pode ser o testador, pois, durante a discussão do projeto, não foi aceita a sugestão de o testamento particular ser escrito por outra pessoa, a rogo do testador.
[...]
Para que teste sob a forma hológrafa tem o disponente de saber e poder escrever e assinar. Não se admite, na espécie, nem a escrita nem a assinatura a rogo do testador.
O Código Civil de 1916 não especifica que a leitura do testamento deve ser feita pelo testador, pessoalmente, mencionando que ― seja lido perante as testemunhas (art. 1.645, III), sem indicar quem o lê. Uma das testemunhas, então, ou até outra pessoa pode fazer a leitura, presentes as testemunhas.
Este Código mudou a orientação, determinando, expressamente, que a leitura seja feita pelo testador e essa leitura é requisito essencial do testamento hológrafo. Se o testador escreve e assina, e se assinam também as testemunhas, sem que lhes tenha sido dada leitura do testamento, este é nulo." FIÚZA, Ricardo (org.). Novo Código Civil comentado. São Paulo, Saraiva, 2002.
Por isso, se o texto foi manuscrito, datilografado ou impresso em computador, isso não é o elemento central de forma definidor da validade de um testamento particular. A questão é escrever o próprio testamento significa elaborá-lo, ser o autor do texto.
O testamento particular de alguém não pode ser escrito por outra pessoa. Quem quiser contratar alguém para redigir seu testamento, deve comparecer no tabelionato da sua cidade. No Distrito Federal, um testamento público custa apenas R$ 81,70 (conforme a tabela de emolumentos de 2020). Por outro lado, se o testador decidir pela forma do testamento particular, a sua redação é tarefa que cabe a si próprio.

Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal
A forma do testamento particular já foi objeto de julgamento pelo Tribunal de Justiça local, que negou validade a um testamento elaborado pela cuidadora da falecida:
“Inicialmente, cumpre destacar que o testamento particular ou hológrafo é o mais simplificado dos tipos de testamento previstos em nosso sistema.
Cuida-se de um instrumento redigido em sua inteireza pelo declarante e, em seguida, lido e assinado na presença de três testemunhas, sem qualquer exigência de autoridade ou registro em cartório. Notando-se, pois, uma facilitação de sua elaboração, pautado, claramente, pela facilidade de disposição da última vontade.” (Acórdão 948668, 20130110219503APC, Relator: GISLENE PINHEIRO, 2ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 15/6/2016, publicado no DJE: 23/6/2016. Pág.: 185/191)
O julgado foi publicado no Informativo n. 331 da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Conclusão
Para elaborar um testamento particular válido, é necessário observar a sua forma, que é muito simples.
O testador deve elaborá-lo pessoalmente, por escrito, e assinar todas as suas folhas. O testador também deve chamar pelo menos três testemunhas (podem ser mais) e ler pessoalmente o testamento em voz alta para as testemunhas. Depois, as testemunhas também devem assinar o documento.
Uma pessoa que vê outra próxima da morte e pretende lhe "facilitar" a última vontade, elaborando um texto, reunindo as testemunhas, lendo o texto no lugar do testador invalida a espontaneidade do testamento. Ninguém pode ser protagonista do testamento de outra pessoa, só do próprio testamento.
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